Os povos indígenas em Rondônia diante da pandemia de COVID-19
Mais informações em https://povosindigenasro.myportfolio.com/doacoes.
‘Tá dando febre alta e dores no corpo’
Lamentavelmente, mais uma vez, os povos indígenas no Brasil são vítimas das doenças trazidas de fora, das doenças dos não índios, das doenças dos brancos. Depois da varíola, do sarampo, da gripe, da malária e da tuberculose, entre muitas outras terríveis enfermidades, matarem milhões ao longo da triste história desse país, a COVID-19 agora cobra seu quinhão. É como se a tragédia da impressionante virulência de numerosas moléstias tantas vezes observada e noticiada, mas, sobretudo, vivida com horror, nas aldeias país afora por mais de 500 anos, se repetisse agora, sem que nada, ou muito pouca coisa, tenha sido feita durante esse tempo. As populações indígenas no Brasil seguem extremamente vulneráveis, por razões sanitárias mas, igualmente, por terem seus direitos originários desrespeitados: terras não regularizadas ou frequentemente invadidas e desmatadas, falta de condições de saneamento, precário atendimento de saúde, dificuldades várias no acesso à alimentação, ao transporte e à garantia de direitos básicos de todo cidadão e de toda cidadã que vivem no país. Não é diferente no estado de Rondônia e no noroeste do vizinho estado de Mato Grosso, região sudoeste da Amazônia brasileira.
Já é dramática a situação do povo Karitiana, grupo Tupi-Arikém que se distribui por seis aldeias nos municípios de Porto Velho e Candeias do Jamari, norte de Rondônia. As notícias que chegam é que, a despeito da mobilização dos próprios Karitiana na divulgação de informações e na realização de ações de autocuidado para evitar a disseminação ampliada da doença, o vírus já se espalhou por cinco das aldeias, onde há muita gente com sintomas, além de muito medo e preocupação. Os relatos que nos chegam dão conta de que, em algumas das aldeias, todos os seus habitantes estão doentes, e famílias inteiras encontram-se em estado crítico, com febre alta e dores no corpo. A condição dos que vivem nas áreas urbanas não é melhor. Uma importante liderança, Antônio José Karitiana, está internado com problemas respiratórios preocupantes em um hospital de Porto Velho, a capital rondoniense. O cenário, desesperador, leva os Karitiana a usarem de seus remédios tradicionais (folhas e cascas de árvores) para tentar combater a epidemia, mas sabemos que o suporte público à saúde e às condições materiais de existência são fundamentais para complementar os tratamentos locais e garantir a saúde e as vidas de mulheres, homens e crianças.
Temos, ainda, notícias de que o vírus já alcançou os Zoró, grupo Tupi-Mondé na fronteira entre os estados de Rondônia e Mato Grosso; em 15 de maio último a anciã Apep Zoró faleceu por insuficiência respiratória e, embora seu teste não tenha acusado COVID-19, os testes usados em Rondônia, segundo o Secretário de Saúde do estado, podem ter 40% de erro em resultados negativos. Há também uma significativa população de indígenas nas cidades do estado, em certos casos povos inteiros (como os Warazuwe ou Guarasugwe), totalmente desassistidos pelas instituições públicas de proteção social indígena; os Puruborá na cidade de Guajará-Mirim relatam medo e total falta de assistência. Desde março indígenas em todas as regiões de Rondônia vêm reclamando da falta de álcool em gel e de máscaras nas Casas de Saúde Indígenas, as CASAIS, situação confirmada pela equipe de profissionais. Em maio, motoristas e alguns técnicos envolvidos com a atenção à saúde indígena foram demitidos. Rondônia já confirmou 2413 casos e 88 óbitos pelo novo Coronavírus, uma taxa de 3,6% de letalidade. Nos primeiros três meses da pandemia, o número de mortes por insuficiência respiratória e pneumonia no estado já alcançava o total de casos em 2019. Além disso, no rastro da conflagração social provocada pela pandemia, assistimos ao aumento das ações predatórias sobre terras indígenas e do sistemático desrespeito aos seus legítimos donos. Quando o vírus já se alastrava pelo estado de Rondônia, em 4 de abril, as invasões se aproximavam cada vez mais da aldeia Panorama, única aldeia na Terra Indígena Karipuna: a menos de 10 km do local habitado pelo reduzido grupo, invasores abriam clareiras. Dias depois, em 18 de abril, a liderança indígena Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi assassinada: professor e agente ambiental indígena, Ari tinha um papel importante na luta contra as invasões na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, denunciadas há mais de um ano junto ao Ministério Público Federal. A situação em outras terras e comunidades indígenas é, assim, de máxima vulnerabilidade.
Existe, pois, o risco grave e iminente de muitas mortes indígenas, especialmente dos mais velhos, que são cruciais na vitalidade e na continuidade das culturas e dos modos de vida indígenas. Se as pessoas, nas cidades, lamentam os impactos da perda de seus idosos e idosas, imaginem o que isso significa para povos que, em muitos casos, viveram histórias recentes de agudos declínios populacionais e cujas populações frequentemente não passam de algumas poucas centenas ou dezenas – às vezes tão somente um punhado – de indivíduos. O impacto será brutal. Não podemos esperar para ver uma história trágica de doença, mortes e extinção de povos inteiros se repetir em pleno século XXI.
Neste panorama desolador, as próprias comunidades buscam se fortalecer. Os povos indígenas em Rondônia e noroeste do Mato Grosso se organizam, da melhor forma que podem, para garantir cestas básicas, kits de higiene e a produção de máscaras, de modo a tentar minimizar os danos sanitários e socioeconômicos que seguramente serão causados pela pandemia. Também buscam elaborar estratégias para amenizar sua vulnerabilidade territorial e evitar a circulação, hoje intensa, de pessoas entre as aldeias e entre seus locais de moradia e as zonas urbanas. Cumpre notar que são essas zonas urbanas onde os indígenas precisam estar, com frequência, em busca pelo atendimento às várias de suas necessidades básicas de saúde, alimentação e educação e na luta pela solução de alguns de muitos dos problemas que enfrentam.
As grandes mídias brasileiras, no pouco espaço que destinam aos povos indígenas, quase sempre conferem destaque às mesmas áreas e determinados grupos indígenas. Mas é preciso ter ciência de que existem quase 300 povos indígenas no Brasil, e todos eles, que já se encontram normalmente fragilizados, neste momento se veem diante da catástrofe imposta por uma nova doença de branco. Rondônia aparece muito raramente no cenário nacional, e sua população indígena, embora expressiva, é pouco conhecida e quase nunca frequenta as manchetes. Entretanto, são cerca de 50 povos diferentes, que falam uma miríade de línguas distintas (muitas delas sem parentesco com outras línguas e em perigo iminente de extinção) e se encontram em situações sociais muito variadas, que vão desde grupos citadinos de longa história de contato, passando por comunidades migrantes oriundas da Bolívia e de outras partes da Amazônia, e chegando até um conjunto expressivo de povos em isolamento voluntário, que se refugiam nas exíguas áreas de floresta que resistiram à hecatombe ambiental que sofreu, e sofre, esta porção da Amazônia.
Por favor, considere ajudar os povos indígenas em Rondônia e noroeste do Mato Grosso, fazendo doações para a confecção e distribuição de máscaras e compra de cestas básicas e outros itens necessários para as famílias que, nas aldeias, encontram-se distantes dos canais de auxílio e das redes urbanas de proteção social e de atendimento à saúde. Há uma campanha em andamento, conduzida por diversos agentes e instituições indigenistas e ambientalistas em Rondônia, incluindo várias antropólogas e vários antropólogos, docentes de outras áreas da Universidade Federal de Rondônia, além de lideranças indígenas locais e regionais.
Felipe Vander Velden (Universidade Federal de São Carlos); Íris Morais Araújo (Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena/UNICAMP); Julia Otero dos Santos (Universidade Federal do Pará); Nicole Soares-Pinto (Universidade Federal do Espírito Santo); Renata Nóbrega (Universidade Federal de Rondônia); Roseline Mezacasa (Universidade Federal de Rondônia); Gicele Sucupira Fernandes (Universidade Federal de Rondônia); Lediane Felzke (Instituto Federal de Rondônia); Luciana Castro de Paula (Universidade Federal de Rondônia); Carolina Aragón (Universidade Católica de Brasília); Luciana França (Universidade Federal do Oeste do Pará); Kécio Gonçalves Leite (Universidade Federal de Rondônia); Maria Lúcia Cereda Gomide (Universidade Federal de Rondônia); Quesler Fagundes Camargos (Universidade Federal de Rondônia); Vanúbia Sampaio dos Santos Lopes (Universidade Federal de Rondônia); Ari Miguel eixeira Ott (Universidade Federal de Rondônia); Carma Maria Matini (Universidade Federal de Rondônia); Maria Cecilia Fantinato (Universidade Federal Fluminense); Aparecida Vilaça (Universidade Federal do Rio de Janeiro).